sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Menina

quis dizer-te alguma coisa. merecia. não sabia o quê. nem como. deitei-me a escrever como os dedos mandavam como que olhando para um vazio à espera de uma qualquer inspiração. qual milagre de musa de que não sei nome. nem história. um dia escrevi
menina
querendo falar-te dos dias em que eras
menina
dos dias em que não soube do teu rosto escondido que estava numa face constituída por outras trinta vinte dez faces
menina
até um dia de um Verão qualquer que não importa. escondidos do mundo dos homens. enredados no mundo daquelas pessoas não musas que produzem muitos milagres na nossa vida sem que saibamos como nem porquê apenas porque sim. e tu
menina
insatisfeita porque sim procuraste saber o porque sim e eu com a sorte que não dos audazes tentei responder-te porque não. foi luz que se te revelou a ti
ainda menina
mas um pouco menos que antes. cada vez menos
menina
e acompanhei. sorri. quase chorei senão chorei mesmo. não me lembro. não importa. que importa a dor a paixão o amor a amizade ou o vento que passa sem que pare na portagem ou os desconhecidos que nos atropelam na calçada ou os trinta vinte dez que conhecendo se desconhecem. apenas tu
menina
ainda menina
lembras-te do carro do mar da água da lua do copo que não se bebeu do sumo que se comia. eram horas de um nada fazer que se transformava num muito falar. era tempo sem musas que nos inspirassem as palavras e palavras e palavras movidas pela brisa que soprava contra as janelas sem nos bater. um tempo de porque sim e porque não onde nenhum dos meus porquês te deixariam sem outro porquê. um tempo de revelações de caminhos que se não queriam de caminhos que se procuravam e se encontravam ou não nas muitas portas que se tentavam abrir. até um dia em que esse tempo se transformou noutro tempo e tu não mais
menina
ainda menos menina
cada vez mais mulher e ainda menina
me chamaste para contar a coisa mais fantástica da tua vida. a impossibilidade das impossibilidades que tantas vezes te tinha dito possível como possível é ao homem voar junto com gaivotas no mar em direcção ao firmamento que afirma que afinal não mais
menina
agora quase mulher
era de tarde e escondemo-nos a caminho do carro que outrora conheceu a brisa a bater-lhe nas janelas como a cantar as palavras e palavras que contavamos um ao outro. fiquei feliz. encontraste um outro tempo com quem dividir o tempo antigo. talvez tenha chorado. sim. chorei. sei lá porquê. porque sim. e tu ainda insatisfeita porquê. e afinal não havia razão para o lacrimejar porque ainda
menina quase mulher
desafiavas as minhas respostas. as minhas perguntas. não querias ver o que todos já tinham visto porque afinal não tanto mulher mas ainda
menina
como menina tinhas sido todo o tempo antes onde te escondias em impossibilidades que ainda achavas impossível. uma vez é sorte duas é milagre. e afinal
menina
milagres existem sabendo eu que não milagre mas antes uma normalidade que desconhecias ainda por seres
menina
mas agora já não mais
menina
escreves o que eu nunca fui capaz como que agora tu
mulher
e eu
menino de meninos
regredindo num tempo que já não vem mas que sem querer aparece para se reviver. não consigo serás sempre para mim
a menina.

em resposta e em agradecimento a este texto "Quando me conheceste"

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A propósito dos Discursos de Salazar

Andava aqui às voltas com os livros que irão constar do meu próximo catálogo e dei de caras com a primeira edição de uma obra fundamental para o conhecimento da história e da política nacional do século XX - os Discursos de António de Oliveira Salazar.
Um dos aspectos mais interessantes do meu negócio é o conseguir sentir - apesar de fragmentariamente - a maturidade cultural de quem nos procura. Uma das coisas que sempre me impressionou pela negativa é esta nossa constante tentativa de apagar um passado que não nos interessa, como se esse passado não fizesse, de algum modo, parte de nós. E este aspecto reflecte-se na incapacidade de valorizar justamente os livros que são marcos importantes da nossa história.
Por exemplo, obras importantes anti-semitas são coleccionadas por esse mundo inteiro por Judeus, valorizando-as, procurando-as, lendo-as ou coleccionando-as.
Aqui, os Discursos, são desvalorizados, pouco procurados, desinteressantes do ponto de vista do coleccionador quando, como reflexo de um pensamento político que nos comandou durante 40 anos, é uma das obras fundamentais da nossa história contemporânea. E o mesmo se passa com obras como as de Mário Soares, António de Spínola, etc.
Curioso no meio de tudo isto é que as obras mais valorizadas e procuradas continuam a centrar-se nos Descobrimentos, nos períodos ditos áureos da nossa história. Ora, a exaltação dos heróis e grandes feitos - veja-se a Exposição do Mundo Português de 1940, por exemplo - é precisamente uma das principais características da política "mental" do Estado Novo.
Pode ser que um dia deixemos de nos envergonhar...

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Luís Pacheco

Acho que o programa já tinha sido emitido, mas só ontem vi - infelizmente metade por distracção. Independentemente do valor literário - que não questiono ou anuncio - Luís Pacheco é um personagem interessantíssimo, um verdadeiro alucinado. Cá por mim ele deveria ter posto mais tabaco nas coisas que fumava.
Retive algumas histórias, mas a mais hilariante a da tradução do Voltaire onde cada palavra que não conhecia era traduzida por um palavrão qualquer a vermelho, tendo o trabalho ido parar à tipografia com as palavrinhas vermelhas.
Também hilariante e definidor do carácter do escritor, a resposta à pergunta sobre o que dizer às novas gerações de escritores portugueses. Com um ar muito sério, pensativo, como se fosse sair dali mais uma qualquer resposta banal a perguntas banais do jornalista, sai um "olhe, puta que os pariu".
Menos hilariante, a dor clara no olhar de um dos seus filhos ao falar de seu Pai. Fez-me pensar como as nossas próprias acções têm consequências, por vezes graves, nos outros.
Curioso também. Já me entraram hoje várias pessoas pela loja adentro a perguntar se tinha coisas do Pacheco. O que me faz pensar sobre a importância deste tipo de programas na divulgação da cultura portuguesa...

domingo, 18 de fevereiro de 2007

vem aí

- vem aí
talvez tenham sido estas as últimas palavras. sereno. enquanto rezava a sua Mãe pedindo-lhe que intercede-se por ele junto de Seu Filho. era-lhe devoto. muito devoto. encontrava todos os dias no regaço de Maria o primeiro encontro com o colo da sua Mãe chorosa de alegria que o acalmou da violência do seu próprio nascimento. era no regaço de Maria que chorava pelas ovelhas tresmalhadas do seu rebanho. era no regaço de Maria que encontrava a força interior para deitar abaixo os muros das dificuldades paroquiais. era no regaço de Maria que ele próprio queria encontrar-se com o seu muito amado Deus.
- vem aí
já no-lo dizia há muito tempo. estivemos juntos pela última vez há cerca de um ano. celebrávamos a morte de Cristo. a sua Páscoa. e do alto de uma varanda. emocionado com a sua própria doença. mas forte como um trovão que vem dos céus. pregou as privações e as alegrias nas privações. a enfermidade e as alegrias na enfermidade. a ausência de Deus e a certeza que não se é feliz sem Ele. do alto daquela varanda cinzenta. tristonha. igual a tantas outras varandas de um qualquer subúrbio urbano. desprovida de beleza. de alegria. perante o enterro do Senhor. da morte. do cenário mórbido de um Homem prostrado na cruz. achincalhado pelo ácido das palavras. poscrito até pelos seus. torturado até ao limite inimaginável das forças humanas. e por fim morto na humilhação da Cruz. ele. homem de fé. pregou a vida. pregou a esperança. pregou a alegria que só entendem os que vivem naquele mesmo Homem humilhado. e aquela mesma varanda. tristonha. igual a tantas outras varandas de um qualquer subúrbio urbano. de repente. encheu-se daquele homem que anunciava outro. e não mais aquela varanda podia ser tristonha e muito menos igual a tantas outras varandas. era varanda colorida pelas cores de um paramento que o enchia. que lhe preenchia a vida. que lhe dava a vida. não mais aquele enterro poderia ser enterro. mas um hino à vida. não mais os que o ouviam podiam chorar. mas antes alegrar-se.
- vem aí
já o sabíamos. na surdina dos nossos pensamentos. nos gritos das nossas orações. já o sabíamos. era segredo para todos que se desvendava no coração de cada um. era a certeza incerta perante o homem alegre. forte. generoso que se nos aparecia pela frente. sorria sempre. nunca um sorriso irónico. sorria com o sorriso de um pai que repreende. que se zanga. que se indigna. mas que ama. mas como podemos encarar a inevitabilidade da morte se é a vida que se nos apresenta aos olhos. única. feliz. perfeita até.
- vem aí
não conheci a sua história. não o conheci bem. apenas cruzámos olhares. palavras. trabalho até por uma ou duas ocasiões. poderia agora dizer que o lamento por ter a certeza ir encontrar um homem bom. mas não lamento. porque o meu coração estava aberto para receber de uma só vez o que Ele através dele me queria dizer. tudo o que fazia. desde a mais pequena das palavras que proferia à mais difícil e trabalhosa responsabilidade tinha uma única fonte. Deus. e hoje. dia triste da sua partida. sinto a ignóbil alegria de o saber no regaço de sua Maria como tantas vezes imaginou aqui...

à memória do Pe. Francisco José

sábado, 13 de janeiro de 2007

Diário de um Pai - Primeiro dia doente

- que se passa, filho?
sabia que um dia este dia chegaria. mas esperei sempre que não chegasse. esperei sempre que tal coisa pertencesse ao domínio dos outros. quis sempre só ouvir falar. e tive medo de quando este dia chegasse. não me sabem falar e eu não os sei ouvir. como saberei eu o que têm? como poderei saber se apenas as lágrimas de choro se atravessam no rosto numa língua que eu não conheço?
- que se passa filho?
diz minha Mãe sobre mim. descansamos no que nos dizem os mais experimentados. minha Mãe três, minha Sogra duas, minha cunhada quatro. e ainda assim como saberei quando chegar? que farei quando chegar?
- que se passa filho?
medimos a febre. assim que introduzimos o termómetro no ouvido o menino soltou o seu grito. é otite. talvez por causa dos dentes. tu. cada dente. cada otite. às vezes cansa estarmos sempre a ouvir a mesma coisa. às vezes cansa mais quando os mais experientes soltam Eureka como que a dizer que sempre tiveram razão. como se nós nunca lhes dessemos ouvidos.
esperámos mais um pouco. o ben-u-ron estava a fazer efeito já fazia três horas. jantámos. tranquilos. depois medimos novamente. novamente a queixa. a febra ainda. telefonei para a pediatra. sempre disponível. solícita.
- diz lá rapaz...
como se ao toque do seu telefone já soubesse que qualquer das crianças que também são suas precisam dela. como se toda a sua vida se tivesse preparado precisamente para aquele momento. o do telefonema de uma Pai à espera de uma solução milagrosa para o choro do seu querido filho.
há dias que anda rabujento. meio febril. desconsolado. dorme mal. come mal. desconfiamos dos dentes. todos nos dizem que são os dentes. cada dente cada otite,
- diz lá rapaz...
disse. medicou-o. corri para a farmácia. medicou-se o menino. e como hoje dormiu tranquilo. sereno. o meu menino que sempre foi. rabujento quando acorda como se lhe tivessem arrancado a melhor noite de sempre. desperto para o que o rodeia. desconfiado de quem lhe sorri.
segunda temos consulta. esperamos que tudo corra bem até lá. a pediatra também. mas aqui guardo o telefone logo no primeiro lugar da agenda para o que der e vier.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Vivo

- como está?
- vivo.
responde sempre da mesma forma. a vida passou por ele. não vive mais. espera a morte. sereno. o rosto marcado com vales dos rios e afluentes de muitas lágrimas não derramadas mas sentidas. um homem não chora. e no entanto
- vivo
como se aquela vida se resumisse agora às lágrimas que a aproximação da morte lhe deixa. foi Pupilo. demasiado civil para ser militar. demasiado militar para ser civil. um soldado não chora. e no entanto
- vivo
não vê. praticamente cego. ceifado que foi da sua maior paixão – a leitura – já nada mais importa. já só a morte espera. e no entanto
- vivo
como que gritando ao mundo para o deixarem viver. ler. olhar uma vez mais para as páginas do seu Amaro. do seu Basílio. do seu Mandarim. do seu peixe pescado em elevador de copa. dos seus incestos. das ironias farposas. tentou escrever. mas comparou-se. não podia deixar de o fazer. e escondeu a sua pequenez comparada na grandiosidade de quem lia com avidez. esquecendo que a sua grandiosidade está nas histórias que me repete esperando um particular interesse. histórias cheias de futilidades de uma vida tão rica quanto banal. simples. igual a tantas outras vidas. e no entanto são essas histórias de um passado que sabe não voltar que permitem que diga
- vivo
a cada vez que lhe pergunto
- como está?
responde sorrindo
- vivo
como que a dizer que vivo já foi e que morto não está. já não a razão manda. continua a comprar livros que ler não pode. a querer que uma imagem desfocada o faça recordar as exactas palavras que Eça deixou escritas. estupidez. admite. não vê. praticamente cego. e ainda assim eu o compreendo não compreendendo as razões de tal compreensão. talvez compaixão. talvez amor. talvez nada. mas compreendo com a compreensão de um dia não ficar assim. agarrado à única coisa que permite diga
- vivo
coisa que já foi mas não é mais. agora é peripécias maldosas de Pupilo. praxes a colegas. partidas a professores. ou o incómodo que lhe causou Basílio. e no entanto
- vivo
como qual primo gritasse pelas ruas de Lisboa
- a ela, a ela como Santiago aos Mouros
sendo a ela não a prima de quem Basílio era primo. mas uma morte que teima em o deixar vivo.
um dia chegará que não mais dirá
- vivo
para dizer nada. e nessa altura recordá-lo-ei com a simpatia de um jovem que pensa não morrer nunca Pai de outros dois que nem sequer na vida pensam e portanto não poderão dizer
- vivo
e chegará o dia quando eles pensarem que a vida é um tempo que não mais acaba que terei um história para contar. a história de um homem que comigo se cruzou por um mero acaso literário e que me respondia sempre
- vivo.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Diário de um Pai - ... que também é marido.

- estou atrasado.
abri a porta. os meninos estavam serenos. muito mais serenos que o costume. adivinhavam. dei-lhes um beijo que não era só meu. sorriram com aquele sorriso que nos faz esquecer todos os tormentos de uma vida levada a correr. fiquei ali um pouco. queria vê-los. agarrá-los ao colinho do mimo e deixá-los ali até que adormecessem.
- estou atrasado.
subi. o vapor do banho quente deixava uma névoa pela casa de banho. como meu D. Sebastião apareces-te ainda despida. sorris-te. sorri. o impulso do corpo empurrou-me de encontro ao teu. abracei-te. beijei-te a testa.
- estou quase pronta.
é o que respondes sempre. estás despida. o vestido vermelho de seda está pendurado no cabide do quarto. os sapatos ainda não foram escolhidos. o pincel. a esponja da base. o baton. o rímel. qual Pollock pegas num. largas outro. veloz. decidida. deixas que a abstracção da cor te ilumine o rosto. escovas o cabelo com os dedos que eu quis ser. e fui. fechaste os olhos. encostaste a cabeça ao meu regaço. deixaste-te ali ficar por instantes. sempre te entregaste assim. toda como és. e me obrigaste a cuidar de ti. num mimo que agora é todo deles.
- estou quase pronta.
num quase que nunca é quase. que é muito pouco quase. que é quase tudo. estás despida. e respondo com um sorriso. como sempre faço quando
- estamos atrasados.
- estou quase pronta.
mas hoje não. hoje não me aborreço. não sorrio irónico. sorrio-te com um amor que sempre te tive. que sempre te terei. que sempre quis dar e tão só contigo encontrei a quem.
- estamos atrasados.
entro no duche como nunca quero. apressado. gosto que a água caindo entre em mim para que eu entre em mim com ela. querendo tantas vezes que sejas a água. que vás caindo pelo meu corpo. suave mas decidida. quente. amante.
- estou atrasado.
apresso-me. desfaço a barba. ponho os cremes. visto a camisa.
- estou pronta.
estás mesmo. ajudas-me a ajeitar o laço. pões o cachecol pelo pescoço. vestes-me o sobretudo. pelo espelho. pelo canto do olho procuro-te. apenas consigo vislumbrar luz. cor. intensidade. pego-te pelo braço. ponho-te à minha frente. estás linda. és linda. como sempre foste. escondida por entre os biberons. as fraldas. a loiça da cozinha. o fogão. o trabalho. nos nossos encontros tão breves quanto intensos em bares repletos de amigos que sempre me invejaram. na escuridão de um olhar que é só nosso. és linda.
- estamos prontos.
- divirtam-se.
os meninos dormem a noite toda. algum problema liga. está aqui tudo.
- divirtam-se.
bem quero. não consigo esquecê-los. ainda agora estou com eles e já não os quero largar. deixar. tu igual. pior que eu.
- divirtam-se.
olhei-te. fomos. ansiosos. porque nos reencontramos os dois. porque os deixamos. a noite é por nossa conta. mas na nossa conta lá estão eles. impossível de os apagar mesmo que por momentos. ainda assim fomos. ansiosos.

as colunas são sempre as mesmas. e a sua história tão grande que sempre diferentes dizem-me sempre algo novo. hoje diziam
- estás linda.
deste-me o braço. feliz por ali estares. por ali estarmos os dois. não outros dois quaisquer. nós dois. senti-me o centro das atenções. eu deslumbrava-te. tu deslumbravas-me. um deslumbre impossível de não reparar de tão grande. reparei na inveja dos homens que me olhavam
- é linda.
primeiro pecado mortal. é escândalo o que fazemos. segundo pecado mortal. és linda. estás linda. levanto o peito orgulhoso. terceiro pecado mortal. que seja. que a morte me leve agora para os confins do Inferno que lá arderei com deleite ainda antes de chegar ao sétimo pecado mortal. deleite de te ter tido. de te ter conhecido. de te ter amado. de ser amado. subimos.
- estás linda.
subimos. segurei-te numa mão. levantavas com a outra o vestido. guardei o melhor lugar para ti. porque só mereces o melhor. enquanto o espectáculo durou não consegui tirar os olhos de ti. absorvida que estavas pela voz doce e forte do Scholl choraste. sorriste. ficaste melancólica. alegre. todo um turbilhão de emoções que sentimos quando ouvimos a mesma voz em casa agora exacerbados pelo calor de o ter ali bem perto. com a certeza que afinal existe mesmo. é real aquela voz de deus. fui eu quem te deu a conhecer esta voz. recordo. estavas renitente. mas ainda assim abriste o espírito não para que o Scholl entrasse no teu coração. mas porque eu que já o tinha invadido. que era já o seu único dono. ouvias todas as minhas explicações. o meu entusiasmo quase delirante por tão grande voz. não tanto deslumbrada por ela. mas mais por mim. e eu que tanto dele gosto. praticamente não ouvi.

vais dizer
- amei.
e disseste. toquei.
- boa noite.
entrámos. levaram-nos para o bar enquanto preparavam a mesa. pediste um sumo de laranja. eu um vodka martini. não porque quisesse parecer um espião galã. mas simplesmente porque gosto. enquanto preparava as bebidas o barman olhou-te.
- é linda.
e olhou-me. a inveja. coisa feia. sorri desportivamente. subimos. o ambiente a meia luz. de um amarelo quente que favorecia o vermelho do teu vestido. a luz do teu rosto. jantámos tranquilamente. falamos de tudo e de nada. pequenas futilidades da vida. os amigos. o espectáculo. e nem uma palavra sobre os meninos. estás a conseguir. e eu também. não esquecer. porque não se esquecem. mas a deixar que nós e apenas nós sejamos donos do momento. levei-te até ao Guincho. bem sei o quanto gostas de ver a lua a fazer o mar brilhar. e nem sequer suspeitas que hoje. mesmo com a lua cheia. não é o mar que brilha. o carro deslocava-se com vagar. chegámos ao hotel. o recepcionista olhou-te
- é linda.
sorri. levei-te pelo braço. deixaste-te vir. tranquila. serena. entegando-te como nunca o tinhas feito antes. e eu recebi-te. amei-te. mimei-te por entre um beijo. sussurro. suspiro.
- és linda.

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Eu sou pelo NÃO a estes bloguistas

Diário de um Pai - desconheço-o

cheguei cedo. não tão cedo quanto gostaria. mas mais cedo que o habitual. muito mais cedo que o habitual. e ainda assim não vos encontrei. haverá um dia em que dirão
- desconheço-o
são milhões de palavras que todos os dias leio. centenas de lombadas. capas de brochura. encadernações em marroquim vermelho. meias amador de pele. primeiras ou últimas edições. segundas. terceiras. tiragens especiais de meia dúzia de exemplares. ou de milhares. tudo isso me absorve o dia. o suga vorazmente sem que dê conta. e eu com ele. desaparecido com o folheto que se esconde por entre as grandes lombadas.
- desconheço-o
como a lua desconhece o dia. todos os dias ela espreita. quer conhecer o sol. abraçá-lo. dizer-lhe que o ama. dizer-lhe olá. eu sou a lua. eu sei que és o sol. há uma infinidade de tempo que te quero conhecer. mas chega sempre tarde. já o sol se foi. já o dia se apagou. já a noite caiu. e com ela a lua. triste. melancólica.
- desconheço-o
tento. sofro de manhã quando parto. sofro à noite quando chego. queria conhecerem-me. desconhecem-me. queria um só beijo dissesse quem sou. queria um só sussurro fosse fotografia que guardam na memória. queria uma só carícia me revelasse.
- desconheço-o
e não sabem que me esforço para vos dar tudo. e ali estão a prová-lo. o leite. as fraldas. a senhora que estudou oito anos. o colégio. o desporto. os livros. os brinquedos. e tudo afinal é tão pouco. falto eu. faltam-me a mim. a mim me fogem. são a lua do meu dia que me quer conhecer e não consegue. de quem fujo sempre. sem que o queira. simplesmente fujo com as lombadas. o marroquim vermelho. a meia amador de pele. levam-me. não quero. mas vou. tenho de ir. se não for não haverá o leite. nem as fraldas. nem a senhora que estudou oito anos.
- quem é mãmã?
sou eu. parte de vós. vós parte de mim. e ainda assim.
- desconheço-o
a mãmã ali está. todos os dias. todas as noites. todos os milímetros de vós. invejo-a. pecado mortal. preparai as portas do Inferno que para lá irei com gosto. invejo-a. que seja pecado. que me atormente a eternidade. invejo-a.
- quem é mãmã?
- desconheço-o.

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Diário de um Pai - Vacinas

vai chorar. vai doer. dói-nos a nós. no fim acabam por se mostrar mais homens que eu. choramingam. já chegou a nem ser isso. nada. absolutamente nada. talvez mais velhos lhes custe mais. a consciência do que vão fazer impedi-los-à de querer ir. ou pelo menos manifestarão a vontade de não querer ir.
vou desmaiar. era assim que avisava a enfermeira quando se preparava para me dar a vacina. vou desmaiar. nem olhava. não queria ver. respirava fundo. procurava abstrair-me. não abstraía. é como iman. atrai. não queria olhar. mas olhava. vou desmaiar. não vais nada. vou desmaiar. comeste? comi. vou desmaiar. irritava aquilo. tenho a certeza que irritava. vou desmaiar. já está e não desmaiaste.
na escola. dia de vacinas. não custa nada. olhava para os colegas e as colegas mais nervosos e dizia. não custa nada. procurava distraí-los. não custa nada. disfarçava com isso o meu nervosismo que só alguns percebiam. vou desmaiar. não custa nada. havia os fortes. de peito levantado. olhar de frente para a enfermeira. olhar de esguelha para as miúdas. não custa nada. havia os indiferentes. tinha de ser. não valia a pena lamentar. e como também não gostavam. não merecia levantar o peito. não custa nada. havia os que tremiam ainda antes de se levantarem da cama. vou desmaiar. não custa nada.
sorrir. no fim todos sorriam. foi dia sem uma das aulas. foi dia livre. pudemos ir jogar à bola. conversar. ler o jornal que orgulhosamente se ostentava para fazer figura de intelectual. ninguém desmaiou. não custou nada. e todos nos divertimos no fim.
não estarei lá. dói-nos mais a nós vê-los serem picados. são mais homens que nós. logo irei saber que se portaram bem. serão fortes. e eu não estarei lá para ver mais um milímetro que passa. eles contar-me-ão logo no banhinho. e eu irei ficar a saber que são mais homens que eu.