terça-feira, 4 de janeiro de 2005

Militância

Na inocência do adolescente que já fui, encontrei-me um dia com um Partido político do qual fui militante activíssimo. Recordo a primeira vez que entrei no pequeno apartamento que serve de sede. As paredes frias, o mobiliario, saído de uma qualquer agência da Caixa Geral de Depósitos, era de tal maneira belo que apenas se encontrava a cor cinzenta, mesmo na mais colorida das peças. O "salão" com cerca de 20 metros quadrados estava repleto de cadeiras (todas as que existiam na casa) dispostas em filas simetricamente arrumadas. Á frente, na mesa da "presidência" estavam sentadas três pessoas, a do meio, o recém-eleito Presidente da Junta, bramia contente todo o apoio que lhe tinham dado. As outras, nos flancos, fingiam que o mérito devia ser entregue, inteirinho, para o recém-eleito. Sorriam. O resto da sala estava semi-vazia para mim, para o Presidente da Junta, congratulando-se com a vasta audiência, semi-cheia.
Senti-me desapontado. Antes de me tornar militante tinha como paradigma político os discursos na Assembleia da República vazios de ideias, mas cheios de bélicas palavras que ferem e matam o adversário. Durante mais de meia hora trocaram-se elogios, contratulou-se pela vitória eleitoral, deram-se vivas pela derrota do adversário mais temido que governava a Freguesia fazia mais de uma dezena de anos. Ao fim daquela meia-hora, que me pareceu muito mais tempo, acreditei que a militância vivia realmente preocupada com o bem estar da população governada. Imaginei o Presidente da Junta a discursar para o povo ao som de "hurras!", imaginei-o a trabalhar no seu gabinete todos os dias como se fosse o último, imaginei-o a receber a população e a resolver, ou pelo menos procurar resolver os seus problemas. Enfim, imaginei que, afinal, um Partido Político era uma coisa séria, cujo principal objectivo fosse o bem comum e não o seu próprio bem.
Fiquei assustado. Não queria pertencer a um Partido assim. Contava com lutas internas acesas, enormes poças de sangue e muitos mortos que um dia ressuscitam sabe-se lá com que milagre.
PUM! De olhos esbugalhados reparei numa enorme espingarda carregada de farpas que uma senhora trazia. Tinha disparado o engenho. O meu coração batia a mil à hora. O ferido levantou-se, arrancou a farpa do peito. PUM! engenho de novo disparado e mais uma vez o ferido levanta-se. A sala espantada com o herói e com o desaforo da atiradora bramia uivos de guerra enquanto aparecia um arsenal bélico de enorme envergadura. Sozinha, ferida de morte, ainda teve tempo de dizer "eu voltarei!" antes do seu último suspiro. O herói, pensei eu ferido com gravidade, saiu ileso. Trazia consigo um colete à prova de farpas que, orgulhosamente mostrou à audiência eufórica - era o resultado das eleições.
Fiquei aliviado, afinal não se trocavam argumentos. Podia voltar tranquilo.
Voltei e fui sobrevivendo aos ferimentos provocados pelas investidas dos inimigos. Um dia fui brutalmente assassinado por um doutor licenciado em Direito, já a trabalhar num escritório, ao qual lhe faltavam quatro cadeiras para concluir o curso. Ainda pensei defender-me com tal peça de artilharia, mas, esgotado dos ferimentos que me tinham sido infligidos e das cicatrizes de alguns anos de militância activa, lembrei-me da senhora que tinha visto naquela reunião e, também num último suspiro disse: "Eu voltarei...!"

P.S.: Texto dedicado a todos os militantes do PS que, sabe-se lá como, mas sabendo-se muito bem porquê, aparecem nestas alturas com sentimentos muitíssimo altruistas. Ah! Já agora, nunca mais voltei.

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