quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Vivo

- como está?
- vivo.
responde sempre da mesma forma. a vida passou por ele. não vive mais. espera a morte. sereno. o rosto marcado com vales dos rios e afluentes de muitas lágrimas não derramadas mas sentidas. um homem não chora. e no entanto
- vivo
como se aquela vida se resumisse agora às lágrimas que a aproximação da morte lhe deixa. foi Pupilo. demasiado civil para ser militar. demasiado militar para ser civil. um soldado não chora. e no entanto
- vivo
não vê. praticamente cego. ceifado que foi da sua maior paixão – a leitura – já nada mais importa. já só a morte espera. e no entanto
- vivo
como que gritando ao mundo para o deixarem viver. ler. olhar uma vez mais para as páginas do seu Amaro. do seu Basílio. do seu Mandarim. do seu peixe pescado em elevador de copa. dos seus incestos. das ironias farposas. tentou escrever. mas comparou-se. não podia deixar de o fazer. e escondeu a sua pequenez comparada na grandiosidade de quem lia com avidez. esquecendo que a sua grandiosidade está nas histórias que me repete esperando um particular interesse. histórias cheias de futilidades de uma vida tão rica quanto banal. simples. igual a tantas outras vidas. e no entanto são essas histórias de um passado que sabe não voltar que permitem que diga
- vivo
a cada vez que lhe pergunto
- como está?
responde sorrindo
- vivo
como que a dizer que vivo já foi e que morto não está. já não a razão manda. continua a comprar livros que ler não pode. a querer que uma imagem desfocada o faça recordar as exactas palavras que Eça deixou escritas. estupidez. admite. não vê. praticamente cego. e ainda assim eu o compreendo não compreendendo as razões de tal compreensão. talvez compaixão. talvez amor. talvez nada. mas compreendo com a compreensão de um dia não ficar assim. agarrado à única coisa que permite diga
- vivo
coisa que já foi mas não é mais. agora é peripécias maldosas de Pupilo. praxes a colegas. partidas a professores. ou o incómodo que lhe causou Basílio. e no entanto
- vivo
como qual primo gritasse pelas ruas de Lisboa
- a ela, a ela como Santiago aos Mouros
sendo a ela não a prima de quem Basílio era primo. mas uma morte que teima em o deixar vivo.
um dia chegará que não mais dirá
- vivo
para dizer nada. e nessa altura recordá-lo-ei com a simpatia de um jovem que pensa não morrer nunca Pai de outros dois que nem sequer na vida pensam e portanto não poderão dizer
- vivo
e chegará o dia quando eles pensarem que a vida é um tempo que não mais acaba que terei um história para contar. a história de um homem que comigo se cruzou por um mero acaso literário e que me respondia sempre
- vivo.

2 comentários:

Madalena_Mauricio disse...

Desejo-vos um Feliz Natal com tudo de bom para toda a família.
Boas Festas
Bjs

The Demon disse...

Boas noites meu amigo. Começo este comentário por dizer que tal texto me deslumbra, por tão bem escrito e tão bem pensado. Há muito que não falo contigo e devo dizer-te que tenho saudades, visto que as conversas contigo me transmitem sempre algo novo a saber, tal como estamos sempre a aprender na vida. Peço também desculpa por não ter vindo mais cedo. Mea culpa.
Espero ter noticias tuas em breve.
Cumprimentos do sempre teu,
David Oliveira.