domingo, 18 de fevereiro de 2007

vem aí

- vem aí
talvez tenham sido estas as últimas palavras. sereno. enquanto rezava a sua Mãe pedindo-lhe que intercede-se por ele junto de Seu Filho. era-lhe devoto. muito devoto. encontrava todos os dias no regaço de Maria o primeiro encontro com o colo da sua Mãe chorosa de alegria que o acalmou da violência do seu próprio nascimento. era no regaço de Maria que chorava pelas ovelhas tresmalhadas do seu rebanho. era no regaço de Maria que encontrava a força interior para deitar abaixo os muros das dificuldades paroquiais. era no regaço de Maria que ele próprio queria encontrar-se com o seu muito amado Deus.
- vem aí
já no-lo dizia há muito tempo. estivemos juntos pela última vez há cerca de um ano. celebrávamos a morte de Cristo. a sua Páscoa. e do alto de uma varanda. emocionado com a sua própria doença. mas forte como um trovão que vem dos céus. pregou as privações e as alegrias nas privações. a enfermidade e as alegrias na enfermidade. a ausência de Deus e a certeza que não se é feliz sem Ele. do alto daquela varanda cinzenta. tristonha. igual a tantas outras varandas de um qualquer subúrbio urbano. desprovida de beleza. de alegria. perante o enterro do Senhor. da morte. do cenário mórbido de um Homem prostrado na cruz. achincalhado pelo ácido das palavras. poscrito até pelos seus. torturado até ao limite inimaginável das forças humanas. e por fim morto na humilhação da Cruz. ele. homem de fé. pregou a vida. pregou a esperança. pregou a alegria que só entendem os que vivem naquele mesmo Homem humilhado. e aquela mesma varanda. tristonha. igual a tantas outras varandas de um qualquer subúrbio urbano. de repente. encheu-se daquele homem que anunciava outro. e não mais aquela varanda podia ser tristonha e muito menos igual a tantas outras varandas. era varanda colorida pelas cores de um paramento que o enchia. que lhe preenchia a vida. que lhe dava a vida. não mais aquele enterro poderia ser enterro. mas um hino à vida. não mais os que o ouviam podiam chorar. mas antes alegrar-se.
- vem aí
já o sabíamos. na surdina dos nossos pensamentos. nos gritos das nossas orações. já o sabíamos. era segredo para todos que se desvendava no coração de cada um. era a certeza incerta perante o homem alegre. forte. generoso que se nos aparecia pela frente. sorria sempre. nunca um sorriso irónico. sorria com o sorriso de um pai que repreende. que se zanga. que se indigna. mas que ama. mas como podemos encarar a inevitabilidade da morte se é a vida que se nos apresenta aos olhos. única. feliz. perfeita até.
- vem aí
não conheci a sua história. não o conheci bem. apenas cruzámos olhares. palavras. trabalho até por uma ou duas ocasiões. poderia agora dizer que o lamento por ter a certeza ir encontrar um homem bom. mas não lamento. porque o meu coração estava aberto para receber de uma só vez o que Ele através dele me queria dizer. tudo o que fazia. desde a mais pequena das palavras que proferia à mais difícil e trabalhosa responsabilidade tinha uma única fonte. Deus. e hoje. dia triste da sua partida. sinto a ignóbil alegria de o saber no regaço de sua Maria como tantas vezes imaginou aqui...

à memória do Pe. Francisco José

1 comentário:

principezinha disse...

Foi vítima da crueldade silenciosa de uma doença que a todos assusta e atormenta. Um momento de paixão intensa, a vivência da efermidade da vida que é, já hoje, um modelo para todos nós. Sinto-o à semelhança do que aconteceu com o nosso Papa que nos ensinou a morrer, a retirar do inevitável uma lição para a vida e uma nova força para viver, para acreditar e valorizar o que realmente é essencial. Imagino-te finalmente sereno, a usufruir da tão anunciada promessa. Mais um testemunho de vida a acrescentar aos que conhecemos e que merecem ser sempre recordados.