quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Diário de um Pai, regresso

Meninos-Ago.2006


regresso. tentar voltar ao ventre materno depois de lá termos saído passados dezenas de anos. é inútil, portanto. a nossa vida nunca mais será a mesma depois de um dia como aquele. não chorei. não ri. apenas sorri. chorar eleva a alma aos mais profundos sons da tristeza. ecos do soluçar. pingar de lágrimas. rir atira-nos por terra. todos os músculos presos a mexerem-se num estado de êxtase elevadíssimo. sorrir. parado entre o rir e o chorar. entre a felicidade suprema de uma vida nova que aí vem e a aceitação intrínseca de que essa mesma vida nova tem infelicidades profundas.
não mais tenho podido vir a este espaço. nem a nenhum outro que saia fora das quatro paredes criadas pelos meus filhos. ou das outras quatro paredes que entretanto adquirimos para lá poderem caber as deles. caixotes. caixas. caixinhas. vidas inteiras que se constroem em tantos pequenos nadas e em outros tantos pequenos lugares agora concentrados num conjunto quase interminável de cartão. o castanho passa a dominar as nossas vidas durante um grande período de tempo. é inevitável não pensar que afinal o Rossio cabe na Betesga. como foi possível juntar tanta inutilidade durante apenas seis anos de vida? tanto foi que agora a mesma tanta inutilidade se vai adicionar a outra tanta que há-de vir vindo de mansinho. atira isso pela janela! não atiro que foi o primo do vizinho da tia-avó da senhora que nos ofereceu. tem valor sentimental. serve ou não serve? ah! lá estás tu. não serve para nada. ainda assim é emparedado de castanho junto com outros tantos sentimentos. e com isto se passam dias. semanas. meses. quem sabe anos. os filhos chegarão a casa de bivaque e o castanho ainda imperará nas quatro novas já velhas paredes que levam as paredes criadas pelos meninos já homens. não tenho podido vir a este espaço. nem a nenhum outro... a culpa é das paredes.
das primeiras. das criadas pelos meninos que ainda virão castanho quando forem homens digo-vos a seguir.
crescer. acto de ficar maior inversamente proporcional ao tempo que eu passo com eles cada um dos momentos. cada milímetro equivale a mais um mês. mais uma semana. mais um dia de que não dei conta. pensava que conseguiria ver cada um desses mílimetros. mas não. quando olho para o lado em busca de um pouco de mim. ou de um pouco de nós. ou de um pouco das paredes que albergam já as criadas pelos meninos. já passou não um. não dois. mas três ou quatro milímetros. a matemática não falha. crescer faz mingar o tempo. é mesmo inversamente proporcional.
com tudo já passaram quatro meses. três consultas no pediatra. (a quarta será daqui a dias). muita cólica. muito ColliMil. muito Aero-Om. Bébé-Gel. toalhetes. fraldas. Aptamil. Vitaminas. e logo logo estarão a fazer a barba. mas o sorriso. a cada sorriso a vida muda mais um pouco. e eu sorrio também. o olhar. olho-os nos olhos e com eles lhes mostro o que o mundo me já mostrou a mim. e eles olham-me também mostrando-me o que o mundo tão diferente do meu já lhes mostrou a eles. o simples acto de pegar ou tentar pegar na chupeta que lhes foge é como vitória alcançada por mim. os discursos que oiço com atenção. parecem políticos extremistas sem votos com o entusiasmo de imaginarem plateias cheias de gente eufórica e fanática. e o beicinho. é estranho o beicinho. anuncia o choro. algo que não está bem. e no entanto deixa-me tão enternecido. tão rejubilante que o acto de rir é incontrolável. é lamentável como até com a desgraça alheia e inocente de um bébé se ri.
antes de ontem dormiram pela primeira vez no seu próprio quarto. custou mais à Mãe. foi difícil convencê-la. sou persistente e argumentativo. resultou. e está a resultar bem. Francisco. tanta cama para mim Mãe! de certeza que é tudo para mim? sim, o mano tem outra igual. Bernardo. Oh! Pai. tanto boneco. tanta coisa gira para entreter os olhos. dormiram bem. a Mãe é que não. e o Pai igualmente mal dormido no dia seguinte lá se levantou cedíssimo para a última leva de emparedamento castanho.
Pude parar um pouco para escrever. já foi mais um mílimetro. mas regressei. não igual. diferente. mas regressei.

1 comentário:

CARMO disse...

Bem regressado!
Estou a ver que as coisas correm pelo melhor por aí e que não perdeste o dom da escrita!
Felicidades X 4!